Por que a Polícia Federal matou Adenilson Munduruku?
Com registros em vídeos, Mundukuru denunciam ataque da PF que resultou na morte de liderança
27/11/2012
Ruy Sposati
de Brasília (DF)
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Adenilson Kirixi Munduruku, morto com três tiros. Foto: Arquivo pessoal |
Viu
as dragas e as balsas pegando fogo, enquanto sobrevoava o rio Teles
Pires. Uma bomba passa ao lado do avião, à direita. No campo de visão de
V. M., não havia indígenas.
O bimotor desce – a pista de pouso
não fora destruída. Havia rastros de sangue no chão, marcas de bala nos
telhados e nas paredes. Espalhados pelo caminho, restos de cartuchos,
munições e carcaças de bombas. Todas as casas estavam com as portas
arrombadas.
E então a comunidade começa a sair e ir ao encontro
de V. Estavam todos escondidos nas casas, assustados com a chegada do
avião. Reúnem-se no barracão e explicam à liderança Munduruku do que
tinham medo.
V. ouve, então, os relatos de uma série de pessoas baleadas, machucadas, queimadas, ainda afetadas pelo spray de
pimenta. Uma mãe chorava desesperadamente: sua filha de cinco anos
estava desaparecida. Achava que poderia estar morta, pois havia se
perdido dela na mata. Havia uma mulher com o rosto inchado por causa de
um soco que o policial lhe deu. Os professores não-índios que trabalham
na comunidade também foram agredidos. Todas as embarcações foram
explodidas ou fuziladas e afundadas. Os barcos de pesca foram
danificados ou destruídos. As armas de caça, quebradas ou levadas.
Dinheiro
e ouro foram roubados. Computadores – entre eles, os da saúde e das
escolas – foram inutilizados. A escola foi alvejada por tiros e bombas
nas paredes e telhado. Celulares e câmeras foram tomados, esmigalhados,
jogados no rio ou tiveram seus cartões de memória apreendidos. Os
motores de popa da saúde foram lançados ao rio. Fiações do telefone
comunitário foram cortadas e o rádio da aldeia confiscado, impedindo
qualquer contato de indígenas com outras aldeias. O carro da aldeia foi
carbonizado.
Neste mesmo dia, uma comissão especial do Poder
Legislativo esteve no local para apurar as denúncias que haviam chegado à
cidade. No relatório da visita, o presidente da Câmara Municipal de
Jacareacanga, Elias Freire (PSDB), afirmou haver "indícios de vários
crimes praticados pela força policial inclusive com exposição de
vulneráveis, o que contraria disposições legais do Estatuto da Criança e
do Adolescente". O vereador Raimundo Santiago (PT), o Raimundinho do
PT, mostrou-se "pasmo com a violência praticada contra os indígenas" e
disse que "as imagens que viu comprovam sobejamente que ocorreu crime
contra o povo da aldeia Teles Pires".
Minutos antes dos indígenas
contarem a V. o que havia acontecido, um Munduruku havia sido encontrado
boiando no rio Teles Pires. Era o corpo inchado de Adenilson Kirixi
Munduruku. Ele havia sido assassinado no dia anterior, 7 de novembro,
durante a ação policial.
7 de novembro
Na
manhã daquele dia, 400 botas pularam de três helicópteros camuflados e
de voadeiras alugadas de ribeirinhos, espalhando-se estrategicamente
pelo território indígena, amassando as formigas da aldeia Teles Pires.
Era
a Polícia Federal (PF) e a Força Nacional de Segurança, acompanhados da
Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente (Ibama), executando manobras da Operação Eldorado, uma mega
ação de desmantelamento de esquemas de garimpagem ilegal nos estados de
Mato Grosso, Pará, Rondônia, Amazonas, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio
Grande do Sul. Chegaram 244 anos depois do vigário José Monteiro de
Noronha ter anotado pela primeira vez em seu caderninho, em 1768, a
presença dos primeiros Munduruku – chamados por ele de de “Maturucu” –
às margens do rio Maués, no hoje estado do Amazonas.
Os indígenas
entregaram à comissão uma relação com os bens destruídos pelos
policiais. Minutos antes dos indígenas contarem a V. o que havia
acontecido, um munduruku havia sido encontrado boiando no rio Teles
Pires, o corpo inchado de Adenilson Kirixi Munduruku. Ele havia sido
assassinado no dia anterior, 7 de novembro, durante a ação policial. Na
manhã daquele dia, 200 soldados desembarcaram de três helicópteros
camuflados e de voadeiras alugadas de ribeirinhos, espalhando-se
estrategicamente pelo território indígena.
Depois do pouso, E. M.
e um grupo de lideranças saíram à procura de representantes da Funai e
do chefe da operação para conversar. Só encontraram o delegado da
Polícia Federal, Antônio Carlos Moriel Sanches, que, segundo as
lideranças, foi responsável pela intervenção. “O delegado falou que não
tinha conversa com autoridade, com indígena, tinha que fazer o que foram
fazer”, conta E. M. “Uma liderança [indígena] telefonou para Brasília, e
de lá falaram que era pra avisar o delegado que não fizesse nada até
que alguém de Brasília chegasse lá”.
“Nessa hora, só estava a
Polícia Federal. O pessoal da Funai e do Ibama estava junto com os
policiais, sobrevoando em dois helicópteros e deixando os policiais em
locais estratégicos para invadir a aldeia”, explica E. M.
Segundo
os relatos, três tiros acertaram as pernas da vítima Adenilson Kirixi,
que perdeu o equilíbrio e caiu na água, sem conseguir se levantar
novamente. “Nessa hora, o delegado deu um tiro na cabeça do Adenilson,
que caiu morto e afundou no rio”. Segundo os indígenas, o delegado foi
resgatado pelos policiais e levado para cima da draga. “Aí os policiais
jogaram uma bomba no Adenilson, quando o corpo já estava afundando no
rio”.
Quando os indígenas tentaram resgatar o corpo do parente,
foram alvejados pelos policiais que estavam em terra. “Eles diziam que
não era para pegarmos o corpo. Do helicóptero, a polícia atirava e
jogava bombas de efeito moral na aldeia, no meio de todo mundo, com as
mulheres, as crianças”, relata.
Procurada, a Polícia Federal não
quis se manifestar sobre as acusações. Segundo a assessoria de
comunicação, talvez a PF e a Funai se manifestem conjuntamente sobre o
caso nos próximos dias.
Meu irmão
G. K. era irmão de Adenilson.
“Quando ouvi o tiroteio, fui correndo para a beira do rio. Estavam
dizendo que meu tio tinha morrido. Eu queria saber se era verdade. Os
policiais jogaram bomba e spray de pimenta. Meu olho ardeu e eu
fiquei sem rumo”. O indígena relata que um terceiro helicóptero teria
chegado nesse momento, com mais policiais. Foi quando ele saiu correndo e
se escondeu na mata. Três horas depois, G. K. volta à aldeia e insiste
em apurar informações sobre a morte do irmão.
“Os policiais me
diziam que não tinha ninguém morto, que os feridos estavam no hospital.
Meu irmão não estava lá”. O Munduruku encontrou, então, o servidor da
Funai identificado como Paulão que acompanhava a Operação. Ele também
lhe negara ter havido alguma morte.
Segundo todos os relatos, Paulão teria sido o servidor da Funai responsável pelo acompanhamento da Operação.
O
laudo cadavérico realizado pela Polícia Civil do Mato Grosso confirmou
que Adenilson Kirixi sofrera três tiros nas pernas e um tiro frontal na
cabeça. Não há informação se houve apreensão e perícia na arma que
efetuou – ou nas armas que efetuaram – os tiros.
Parte dos
indígenas fugiram para a mata, parte para as residências, imaginando que
ali estariam seguros. Durante a fuga, dois indígenas foram gravemente
feridos pelos policiais. E. M. e O. K. estão hospitalizados em Cuiabá.
Outros indígenas também foram levados para o hospital. O pelotão, então,
invadiu a aldeia, arrombando portas e janelas, jogando bombas dentro
dos domilícios “Levaram tudo o que tinha dentro das casas”, atesta
“Chutaram meu pai”
“Eu
vi os tiros e saí correndo pra pedir socorro no rádio e na internet.
Quem estava no rádio comigo ouvia os tiros”, conta I. W. “O meu pai
chegou onde eu estava, ferido. Tinha levado um tiro de bala de borracha.
A gente saiu e começou a gritar pra eles pararem de atirar, mas eles
não pararam”, relata I. W. “Corriam atrás da gente e atiravam. Atiraram
na mulher do meu irmão, que está grávida de 8 meses. Atiravam com bala
de borracha e com bala de verdade também”.
“Então entramos de
novo em casa, com mais umas dez pessoas. A polícia arrombou a porta e
entrou jogando bombas de gás lacrimogêneo na gente. Tinha uma mulher com
um bebê de dois meses lá dentro”. Segundo I.W., os policiais mandaram
todos saírem da casa e colocarem as mãos na cabeça. “Chutaram o meu pai e
agrediram todos os homens que estavam ali”.
Segundo I. W., aos
homens – também idosos – foi ordenado que deitassem no chão com as mãos
na cabeça, enquanto as mulheres e crianças foram mantidas como reféns,
separadamente, no campo, com armas apontadas para elas. “As mulheres e
crianças ficaram o dia inteiro debaixo do sol, com os policiais armados
em volta. A gente pediu comida, mas não deram. Não deixavam a gente
falar a nossa língua, só português”.
“Arrombaram o posto de
saúde, jogaram uma bomba de gás e apontaram uma arma para a cabeça da
técnica de enfermagem, L. R. Jogaram os remédios no chão e quebraram os
medicamentos. Também atiraram na escola, jogaram bombas e quebraram as
telhas”, relata. I. W. que chorou muito ao contar esta história.
Os
feridos foram levados de helicóptero para atendimento no Hospital
Regional de Alta Floresta, em estado grave. Segundo as lideranças
indígenas, ainda estão internados. Os agentes da PF receberam
atendimento no local.
E. M. relata as prisões posteriores ao
ataque. “Eles levaram 17 pessoas para a fazenda Brascan, onde havia uma
base da polícia”, conta. Eles foram enviados a Sinop, em Mato Grosso – a
aldeia fica em Jacareacanga – e depuseram à polícia. Os depoimentos
teriam sido acompanhados por um Procurador da Funai de Cuiabá cujo nome
não souberam dizer. Posteriormente, foram levados de volta à aldeia pela
polícia.
Foi no final da operação, ainda no dia 7, que as dragas
e balsas foram destruídas. Segundo os indígenas, cada uma das onze
embarcações destruídas no leito do rio tinham de 30 a 40 mil litros de
combustível, além de baterias. Eles relatam que os peixes estão morrendo
e que não podem usar o rio, agora contaminado pelos fluídos.
Segundo os indígenas, a polícia permaneceu nas proximidades por mais três dias.
Os
professores e profissionais de saúde não-índios não querem voltar para a
aldeia. Os alunos não querem ir às aulas. A comunidade possui cerca de
500 pessoas, contando com mais duas aglomerações, a dos Kayabi e a dos
Apiaká, que também dependem da estrutura de Teles Pires.
Blitzkrieg bop
No
dia 6, W. U. conta que indígenas Kayabi compartilharam pelo rádio a
informação de que helicópteros estavam sobrevoando suas terras.
“Achávamos que eles estavam vindo pra se reunir com a gente”, relata.
Contudo, segundo W. U., o que estava acontecendo ali era a construção
das bases da Operação Eldorado. A primeira fora construída na Fazenda
Brascan, localizada no Vale Ximari, em Apiacás (MT), a dez quilômetros
da comunidade Kayabi.
A segunda base da Operação foi montada a um
quilômetro da aldeia, no igarapé Buretama. Foi neste local, “onde há
apenas um morador”, que um grupo de guerreiros Munduruku foi ter com os
policiais para entender o que estava acontecendo.
Quando os
indígenas encontraram os policiais, eles estavam evacuando uma das
balsas que seria destruída. “Perguntamos o que eles iriam fazer. Eles
disseram que não queriam conversa, que vieram fechar o garimpo e
explodir as dragas, que tinham uma ordem judicial pra isso”.
Os
indígenas pediram para ver o mandado que autorizava a Operação, e
insistiram sobre a necessidade de uma reunião entre a polícia e as
lideranças. “Explicamos que o garimpo era o nosso sustento, que não
poderiam fechar assim. Trouxemos o documento do acordo com a Funai sobre
o garimpo”, explica. “Aí começou o desentendimento. Um policial quebrou
uma flecha e deu um empurrão num cacique de uma aldeia próxima. Eles
falaram pra gente tirar o que a gente quisesse da draga, porque a draga
ia ser explodida, e assim foi feito”.
Segundo W. U., os indígenas
retornaram à aldeia para contar ao cacique e outras lideranças que a
polícia estava na área e havia destruído uma das embarcações. Os
policiais suspenderiam a destruição e só voltariam no dia seguinte.
W. U. foi atingido por bombas e está com marcas de queimadura no corpo.
Segundo
todos os relatos, a Força Nacional de Segurança não se envolveu nos
momentos de violência da Operação. A Polícia Federal em Mato Grosso
decidiu suspender temporariamente a Operação. O MPF do Mato Grosso e do
Pará abriram investigação sobre o caso.
Rastros de sangue
E
a vida corria bem seu curso para os Munduruku, desde quando Karosakaybu
(1) os criara, na aldeia Wakopadi, nas cabeceiras do rio Krepori. E
então os pariwat (2) chegaram; para nós, era o século XVIII, com nossas
frentes colonizadoras. As coisas nunca são as mesmas, e ali,
definitivamente, nunca mais foram as mesmas para os Munduruku.
Os
Munduruku, hoje, totalizam pouco mais de 11 mil pessoas, espalhadas em
áreas indígenas reivindicadas, demarcadas ou homologadas. A difícil
localização e situação de quase isolamento das comunidades – num cenário
de pressão das espoliações para a exploração exógena de suas terras e
riquezas – os colocaram, ao longo da história, em contextos complexos de
conflito com a sociedade envolvente.
Um exemplo disso foi o
episódio ocorrido em julho deste ano. Um Munduruku foi barbaramente
assasinado com 21 facadas e pauladas que destruíram seu rosto. O corpo
da vítima foi encontrado por um morador jogado em um terreno baldio,
próximo à residência do pai. À época, dois dos quatro suspeitos de
serem autores do crime foram deixados em liberdade pela polícia civil. A
falta de investigação e providências das autoridades foi o estopim para
que, enfurecidos, os indígenas cercassem a delegacia da Polícia Civil
de Jacareacanga exigindo que a polícia permitisse que eles fizessem
justiça com as próprias mãos. A delegacia foi depedrada e incendiada
pelos Munduruku – a cidade, sitiada.
Em 2002, a situação do
garimpo nas terras indígenas estava calamitosa. Centenas de garimpeiros
trabalhavam clandestinamente, viviam dentro das terras indígenas e
traziam consigo toda uma cadeia extremamente perversa que orbitava a
atividade. Exploração de mão de obra, dominação, drogas e prostituição
eram algumas delas. Foi então que os Munduruku também tiveram de começar
a resolver as coisas com as próprias mãos, e retiveram os garimpeiros e
funcionários da Funai para pressionar o órgão a realizar um acordo que
desaguasse numa operação de retirada dos mineradores da área.
"Sabemos
perfeitamente que o garimpo, além de ilegal, é ruim para o nosso rio e
para a nossa gente", explica V.. "Acontece que essa foi a única forma
que encontramos para sobreviver nos últimos tempos", expõe. "Mas nós
sempre quisemos acabar com os garimpos".
E então V. apresenta um
documento ao qual ainda não foi dada nenhuma publicidade por parte do
governo, e que confirma a vontade dos indígenas em terminar com os
garimpos. Um ofício registrou uma reunião que ocorrera entre indígenas
Munduruku, Kayabi e Apiaká e diversas coordenações da Funai regional e
nacional, junto ao MPF-PA, em setembro de 2005, onde os indígenas
apresentaram propostas para a substituição do garimpo por um projeto de
desenvolvimento e geração de renda para a comunidade. Como alternativa à
extração do ouro, os indígenas exigiam suporte para implantar e
consolidar projetos de "produção de artesanato, produção de mel de
abelhas, piscicultura, avicultura, implatação de casa de farinha e
agricultura (consórcio de culturas). Dentre essas propostas, a mais
discutida e que os índios priorizaram foi a de produção de artesanato
(…). Quando o índio vai caçar, pega sementes, cipó e vigia a área",
relatava o ofício, protocolado nas quatro instituições.
"Façamos"
"Com
esses projetos, gradativamente iríamos acabar com o garimpo. Só que
esse eles nunca saíram do papel", expõe V.. Então, as comunidades
começaram a interferir diretamente na extração ilegal, no sentido de
reduzir os impactos causados pela atividade. "Morria muito branco,
índio, tinha tráfico de drogas e a Funai não tomava nenhuma providência.
E a gente continuava escravo do garimpo. Então nós mesmos tomamos
providências". V. relata, então, que os próprios indígenas estabeleceram
com os garimpeiros novas regras sobre como se daria o trabalho na área.
Proibiram os garimpeiros de portarem armas, levarem bebidas e
comercializarem drogas, entre outras coisas. Colocaram placas pela
comunidade, para que todos que entrassem informassem o que iriam fazer
ali. Em 2010, sob o conhecimento da Funai e do Ibama – e portanto dos
ministérios da Justiça e Meio Ambiente – estas regras tornariam-se um
"Acordo de parceria para atividade de mineração" entre indígenas Kayabi e
os proprietários das balsas.
Com o dinheiro do garimpo, os
Munduruku mantinham uma casa de apoio em Jacareacanga. Garantiam a
geração de energia para a aldeia. "Os alunos que estudam fora eram
mantidos com o dinheiro da mensalidade do garimpo, e tudo o que era
comprado [com esse dinheiro] é de toda a comunidade. A manutenção de
equipamentos das aldeias vem daí. Quem trabalha dentro da aldeia também
recebia daí".
Além das comunidades receberem um pagamento mensal
dos proprietários das balsas pela exploração do rio, alguns indígenas
trabalham diretamente na mineração. Outros vendem produtos como farinha
de puba, polvilho, tapioca, futas, pecados e artesanatos. "Hoje, depois
do que aconteceu, nós simplesmente não temos condições de nos manter",
lamenta V..
V. explica
Embora considere
injusta, V. poderia ao menos compreender uma operação que se limitasse a
destruir os instrumentos de extração do minério. Contudo, ele é
taxativo ao apontar que "a ação policial não foi só no garimpo. Foi
dentro da aldeia. E não existia garimpo dentro da aldeia. Por que
atacaram a aldeia, então?"
É certo, então, que esta ação belicosa
ofensiva não se explica por si só, levando em conta o acordo citado
acima e o contraponto da narrativa dos indígenas à versão da Polícia
Federal – ou seja, a retificação de que não houvera "emboscada" alguma
dos indígenas contra a operação, conforme declarou a PF em nota pública (
leia),
justificando publicamente o uso da violência e culpabilizando os
indígenas pelo ocorrido. Por que, então, mataram aquele Munduruku? Por
que invadiram e aterrorizaram de maneira brutal e desastrosa toda uma
aldeia?
V. tem uma explicação. "Nós já dissemos [à Funai e ao
governo] que não permitimos estudos de impacto ambiental na nossa terra
para hidrelétricas. A operação da Polícia Federal tem ligação com a
nossa resistência à construção das barragens. Eles querem fragilizar as
comunidades pra ficar mais fácil de construí-las. Mas nós nunca vamos
aceitar trocar nossas terras por migalhas. O que eles fizeram só
fortalece a nossa luta", diz.
I. W. concorda com V.. "Eles acham
que, tirando o garimpo, ficamos sem dinheiro, e vamos ter que aceitar a
barragem. Só que nós estamos firmes de não aceitar barragem na nossa
terra". Funcionários do órgão indigenista oficial que não podem se
identificar concordam que a perseguição se dá por conta da total
contrariedade dos Munduruku a empreendimentos hidrelétricos e
hidroviários, e afirmam ser a aldeia Teles Pires o principal foco dessa
resistência.
Os Munduruku se opõem frontalmente à construção de
dois complexos de barragens do Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC), do governo federal. São os Complexos Hidrelétricos Tapajós e
Teles Pires, conjunto de treze hidrelétricas previstas para a região.
Parte
delas está sendo licenciada pelo órgão federal responsável, o Ibama;
parte pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Mato Grosso. O
complexo Tapajós está todo inventariado, mas apenas duas das sete usinas
com processo de licenciamento abertos, em fase de estudos. No último
dia 21, a Justiça Federal em Santarém proibiu a concessão de licença
ambiental para uma delas, a pedido do MPF-PA, enquanto não forem
realizadas consulta prévia aos índios afetados e avaliação ambiental
integrada de todas as usinas planeadas para a bacia do rio Tapajós no
Pará.
Para viabilizar os licenciamentos das barragens do Tapajós
- e o início da operação das usonas Santo Antônio e Girau, no rio
Madeira (RO) -, a presidenta Dilma Rousseff publicou, em janeiro, uma
medida provisória (MPV) que reduzia sete unidades de conservação em
áreas atingidas pelos empreendimentos. a MPV foi convertida em lei em
junho, dois dias depois da Conferência das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento Sustentável na Rio +20. Tanto a medida quanto a lei
foram contestadas pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel, no
Supremo Tribunal Federal.
Indígenas vão a Brasília denunciar ataques da PF
|
O Ministério da Justiça promete investigar se houve excessos na ação policial.
Foto: Arquivo pessoal
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Quase
duas semanas depois dos acontecimentos e sem nenhuma resposta, uma
comissão de uma dúzia de Munduruku, Kayabi e Apiaká – entre eles, quatro
testemunhas do ataque – veio a Brasília na última semana. Queriam
reforçar as denúcias das violações diretamente ao Ministro da Justiça,
José Eduardo Cardoso; à presidenta da Funai, Marta Azevedo; à Ministra
do Meio Ambiente, Izabella Teixeira; e exigir a apuração e a punição dos
responsáveis, bem como traçar, por intermédio destas instituições, uma
ação emergencial de reparação aos danos causados.
O grupo não foi recebido por nenhum deles.
Um
grupo de assessores foi ter com a comissão. Durante o encontro, os
indígenas narraram os acontecimentos, a partir do testemunho das vítimas
e dos relatos das comunidades.
Ao que o secretário de articulação
social da Secretaria Geral da Presidência, Paulo Maldos, respondeu:
"Houve esse problema, vocês estão aqui trazendo informações pra gente, e
a gente respeita, vai levar em consideração. Se houve problema de
conduta errada, vai ser apurado."
Os indígenas questionaram quem
realmente havia autorizado a PF a realizar aquela ação. Um assessor do
Ministério da Justiça, Marcelo Veiga, disse não saber a qual processo
judicial se vincula a Operação Eldorado, mas afirmou aos indígenas que
eles estavam executando uma decisão da Justiça Federal.
"A gente
não está jogando pra cima da Justiça Federal a responsabilidade. Há uma
determinaçao da Justiça pra que aquela operação fosse realizada. Ninguém
está fazendo jogo de cena aqui", disse Marcelo. "Não tem que ficar
dúvida de vocês que a atuação e a parceria da Força Nacional e da
Polícia Federal com a Funai [e os indígenas] é de muito sucesso. Esse
foi um caso episódico, que pode ter havido abuso ou não. [Porque] A PF
dialogou anteriormente com as lideranças indígenas [das aldeias atacadas
durante a Operação]. A gente vai ter que apurar".
Funai
Expuseram
detalhadamente que, sem os barcos, com o rio contaminado, sem os
instrumentos de caça e pesca e sem a renda gerada a partir dos garimpos,
os indígenas estão numa situação de urgência extrema.
"A Funai
está atrasada com suas ações de promoção naquela região", argumentoua
diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, Maria
Augusta Boulitreau Assirati. "E não dá pra fazer, esse ano, nenhuma ação
concreta. Vou ser sincera com vocês. [Mas] cesta básica a Funai jamais
vai se negar [a distribuir], se for constatada necessidade".
"Nós
sabemos que o governo tem voltado um olhar pra toda a região ali do
Tapajós e do Teles Pires", disse Maria Augusta. "Vocês nos disseram aqui
diversas vezes que o governo diz que os índios são um empecilho ao
desenvolvimento. Desenvolvimento nao pode ser incompatível com a vida e
com as formas tradicionais de vida dos indígenas", explicou. "Como os
empreendimentos hidrelétricos. Tem que ouvir o que as comunidades
pensam. Da mesma forma que vocês tem que ouvir a visão do governo. Por
que o governo acha importante fazer uma hidrelétrica? Por que o governo
acha importante fazer uma barragem? O processo de licenciamento acontece
nesse sentido e para isso. Que vantagens traz [um empreedimento], que
desvantagens traz?"
Os indígenas perguntaram a eles quem era Paulão. Não souberam responder.
A
reportagem não teve acesso à relação detalhada de todos os
participantes da operação, sejam eles da PF, da FN, da Funai, do Ibama
ou de outros órgãos que tenham participado da ação.
As fotos e vídeos utilizados na matéria foram registrados por indígenas Munduruku e Kayabi.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/11236